É comum nos depararmos com choro e reações intensas da criança, como a raiva e a birra, ao dizermos “não”. Quem é pai, mãe e educador sabe bem disso!
Portanto, neste artigo, discutiremos a importância de dizer “não” à criança e veremos alguns caminhos para construir esses limites de forma adequada desde o nascimento do bebê e como isso pode beneficiar as crianças a longo prazo.
Para isso, precisamos recorrer ao começo, quando a criança acabou de nascer e ainda está desprovida de qualquer habilidade, além de ser totalmente dependente da mãe.
Mãe suficientemente boa, uma fase importante para a construção do limite
Antes da criança se afinar com o limite imposto pelo adulto, é preciso construir nela a confiança desde quando ainda é um bebê. E é isso que vamos ver nos parágrafos seguintes.
A partir do ventre materno, o bebê inicia sua jornada de exploração do mundo. Embora esteja em um espaço seguro e limitado, dentro do útero, a criança já começa a adquirir experiências que irão fazer parte da sua vida, uma vez que as funções fisiológicas e emoções da gestante são compartilhadas com o feto. Quando desejado, o feto sente de alguma forma e quando não, também.
Quando o bebê já está no ambiente exterior ao ventre da mãe, ele é influenciado diretamente por aquele que cuida dele. Se as necessidades do bebê são pacientemente respeitadas, o bebê tem chances maiores de se tornar uma criança segura, entretanto, se for descuidado ou invadido pela vontade do adulto em suas necessidades, provavelmente, será mais inseguro.
De acordo com Winnicott, psicanalista, psiquiatra e pediatra do século XX, o ambiente inicial do bebê desempenha um papel crucial na formação de sua identidade e no desenvolvimento de sua capacidade de se relacionar com o mundo.
O ambiente acolhedor, que o psicanalista denomina de “mãe suficientemente boa”, sensível e responsivo às necessidades do bebê é essencial para o seu desenvolvimento saudável. A presença dos cuidadores, especialmente da mãe, oferece ao bebê uma sensação não só de segurança, mas também de confiabilidade.
Quando os cuidadores atendem às necessidades básicas da criança, como alimentação, conforto e afeto genuíno, eles estabelecem uma base sólida para o bebê que se deparará, no futuro, com as demandas sociais.
Desse modo, o bebê será capaz de desenvolver confiança, estabelecer vínculos afetivos seguros e explorar o mundo com concordância – e não com embate –, pois ela aprendeu a confiar.
Mas cabe enfatizar que “a mãe suficientemente boa” também precisa ser cuidada, pois ela abdica boa parte da sua vida para cuidar do bebê. A parceria com a rede de apoio é essencial, seja com avós, irmãos, babá, parceiro(a) ou pai.
E sobre as necessidades do bebê, Winnicott explica que na busca pela compreensão do que a criança quer e precisa, a mãe lhe oferece uma sensação de ilusão necessária fundada na continuidade e na confiabilidade, permitindo que o bebê desenvolva gradualmente a percepção de si mesmo e do mundo ao seu redor.
Com isso, o bebê começa a estabelecer uma base segura para explorar e interagir, o que mais tarde será fundamental para a formação de uma autoestima sólida e para o desenvolvimento das habilidades sociais e emocionais, como base para a construção do limite na zona do respeito sem dramas e sem medo.
A transição do mundo ilusório para o mundo real
Vencido o intervalo de tempo em que a mãe assume o papel de “suficientemente boa” incondicionalmente e quando a criança vai ganhando autonomia, “dizer o não” ou começar a impor limites verbais e não verbais passa a tomar um lugar importante na constituição da criança, pois, entenda: o limite faz parte dos cuidados necessários para a nova fase da vida e ele tem que vir do adulto.
Criar filhos pode ser um desafio gratificante, mas nem sempre é fácil tomar decisões quando se trata de estabelecer limites. Muitos pais têm receio de dizer “não” aos seus filhos, preocupados em desapontá-los ou prejudicar sua autoestima. Para isto é preciso disposição.
Devemos sempre lembrar que para se viver em uma sociedade são necessárias as restrições, as fronteiras, as regras e as leis. Portanto, não há dúvidas quanto à importância da discussão sobre a necessidade da construção dos limites na relação da criança com o adulto como parte do seu desenvolvimento.
É super importante que o limite venha de casa e não que comece a partir do constrangimento, quando a criança sai do social familiar para outro mais complexo, como a escola por exemplo.
Entenda que existe um valor fundamental no “não” bem colocado, assim como no estabelecimento de regras claras para a estruturação subjetiva da criança.
Para Freud, a negativa é fundamental para a aprendizagem sobre a diferença entre fantasia e realidade, para a saída da predominância do princípio do prazer individualista e a entrada no registro do princípio do que é real, o que vai permitir um prazer possível e compartilhado socialmente.
Sabe aquele dito popular: “a liberdade termina quando começa a do outro”?
Ao impor limites, os pais e cuidadores fornecem um guia para as crianças entenderem o que é aceitável e o que não é, ajudando-as a desenvolver um senso de responsabilidade, empatia e o respeito pelos outros.
Limite não é coisa ruim, ele faz parte da segurança emocional da criança e proporciona um ambiente previsível e consistente. Isso significa que o limite propicia virtudes à criança para sua entrada no mundo adulto.
Adultos e crianças precisam suportar a frustração do “não”
Se você pensar no quanto é importante saber dizer “não” à criança, talvez isso venha a lhe ajudar a colocar o limite no momento em que se pode. A criança sem limite se sente solta e isso pode gerar nela sofrimento. O enquadramento é necessário para todos, crianças e adultos.
Quando ela se irritar, suporte o momento de frustração da criança e mesmo que você se sinta mal com isso é possível achar um espacinho dentro de você para confortá-la. Fique perto dela e se mostre presente sem hostilidade, só aguarde pacientemente até ela se “arrumar”. É melhor não falar que fuja ao ato de, simplesmente, a irritação: “eu entendo que você está muito chateado” e pronto. A criança é imatura e precisa de um tempo para se organizar.
Além disso, saiba que, ao ouvir “não”, as crianças são incentivadas a explorar alternativas, a lidar com a frustração e a desenvolver habilidades de autorregulação. Isso as prepara para enfrentar desafios e tomar decisões adequadas ao longo de suas vidas. O ganho está na aquisição da sensatez.
Em suma, estabelecer limites e dizer “não”
- oferece à criança uma estrutura necessária para seu desenvolvimento saudável,
- ajuda-a a compreender a diferença entre fantasia e realidade,
- auxilia a lidar com a frustração e a discernir aquilo que ela pode ou não pode fazer,
- mostra o caminho para alcançar um prazer compartilhado e adequado às normas sociais.
- facilita a vida da criança na hora de escolher entre isto ou aquilo, entre o certo e o errado, entre o pior e o melhor etc.
O limite combina com amorosidade
A partir do que já foi dito, é importante dizer que a imposição de limites deve ser feita de maneira amorosa e respeitosa, levando em consideração as necessidades individuais da criança.
A abordagem deve ser equilibrada, oferecendo espaço para a expressão da individualidade e estimulando a autonomia, dentro dos limites estabelecidos.
Como fazer com que a criança vá tomar banho todo dia sem você perder o juízo?
Esse assunto pode ser conversado com a criança, mas o adulto deve saber que a criança precisa tomar o banho porque é importante ela tomar banho, e ponto final. Ninguém está perguntando se ela quer tomar banho. Aliás, não pergunte!
Exemplos não faltam, mas o que é importante entender é que dizer “não” de forma adequada e consistente é essencial para o desenvolvimento saudável da criança e se você, com frequência, desfizer o limite, a ordem ou a regra, ela aprende que o “não” nem sempre é “não”.
Não é preciso gritar para colocar o limite
Podemos entender que o “não” colocado de forma adequada sugere impor o limite sem precisar gritar, sem ameaçar, sem barganhar. A partir da confiança e da relação de respeito, falar com segurança o “não” ou dizer o que a criança deve fazer naquele exato momento se mostra como sendo mais aceitável para ela.
A capacidade do adulto de colocar o limite é que vai definir a capacidade da criança de receber o “não” e de lidar melhor ou pior com as frustrações.
Sobre isso, você pode entender melhor visitando em nosso blog o artigo sobre “Como ajudar os filhos a lidar melhor com as emoções”.
Então, dizer “não” ajuda a criança a desenvolver a habilidade de lidar com a frustração e a compreender que nem sempre obterá tudo o que deseja. Aprender a lidar com a negativa é uma habilidade importante para enfrentar os desafios da vida e construir resiliência.
Quando os pais evitam colocar o limite, podem criar uma expectativa irreal de que todas as vontades da criança serão atendidas como se fosse aquele bebê de antes e essa percepção não ajuda a criança a amadurecer, o que pode prejudicar, principalmente, seu desenvolvimento emocional e social.
Na criança sem limites, pode-se observar facilmente a vontade impulsiva de pegar o brinquedo do outro, de não saber esperar a sua vez, de achar que pode conseguir tudo o que lhe vem à cabeça e até de se tornar agressiva quando não consegue o que quer. Imagine o quanto isso pode se tornar difícil e desgastante para os pais e para a própria criança.
Então pense no que você pode evitar ao conseguir dizer “não” de forma adequada. Antes da criança aprender a aceitar o não, o adulto precisa aprender a dizê-lo de verdade. Assumir o não como não.
Entretanto voltamos a dizer que existem formas de se colocar o limite e o exagero do uso do “não” também pode ser angustiante para a criança.
Para encarar o desafio do limite com seriedade e responsabilidade, lembre-se do quanto é imprescindível para a criança esse aprendizado, que interferirá por toda sua existência, até a vida adulta, certo?
Por esse motivo, durante os primeiros anos de vida da criança, de 0 a 7 anos – conhecidos como primeira infância – é de extrema importância estabelecer limites claros e consistentes, mas lembre-se, com o devido respeito, sem autoritarismo, isto é:
- sem humilhar,
- sem condenar,
- sem expor a criança
- sem demandar o que ela não consegue realizar,
- sem discursos e conselhos que se esvaziam em uma fala moralista e excessiva,
- sem empobrecer as possibilidades da criança ser criança.
Faça um exercício e pense: em que momentos você pode ou poderia ser autoritário na hora de colocar o limite?
Pense que colocar o limite não significa ser autoritário ou negar todas as solicitações da criança, abra um espaço para a escuta e considere, sendo razoável, o que ela tem a dizer.
Preocupações que podem orientar a colocação do limite
Quando nos tornamos pais de uma ou mais crianças, nos tornamos também educadores. O ato de educar está relacionado diretamente com o ato de cuidar. Portanto, quando colocamos o limite na criança, por um lado estamos cuidando dela e por outro precisamos refletir sobre a maneira de como este limite está sendo colocado.
No momento do limite, nos posicionamos do lugar de autoridade, uma referência de cuidado e de responsabilidade para a criança. O problema começa, como já mencionamos, quando passamos do ponto e entramos na área do autoritarismo.
O autoritário, em certo sentido, se volta para si, não consegue muito bem se colocar no lugar do outro, não escuta com sensibilidade e muito menos pretende dialogar. Ele geralmente enche a cabeça da criança de conselho. Portanto, o limite a ser dado a partir do autoritarismo desvalida o individualismo da criança em suas emoções e compromete, inclusive, a sua autoestima.
Nesse sentido preparamos algumas reflexões sobre como o limite pode ser colocado:
- Os limites devem ser estabelecidos de maneira consistente e adequada à idade e capacidade da criança.
- É necessário considerar o estágio de desenvolvimento, adaptando as expectativas e regras conforme a criança cresce e amadurece.
- Os limites também devem ser acompanhados de uma comunicação amorosa e empática, sem perder a firmeza.
- Os limites devem ser apresentados como uma afirmação e não como pergunta.
- Os cuidadores devem explicar os motivos por trás das regras sem falar demais.
- O limite deve ser claro.
- As alternativas ao limite podem ser apresentadas em certas situações, mas não torne isso um hábito.
- O limite pode estar aberto ao diálogo, permitindo que a criança participe do processo de estabelecimento do próprio limite.
E a escola, o que ela pode oferecer em relação à construção do limite?
Ao longo das últimas décadas, a sociedade passou por diversas transformações que impactaram as famílias, desafiando os modos tradicionais de educação. Essas mudanças têm levado as escolas a desempenharem um papel cada vez mais relevante no cuidado e na formação dos estudantes.
Nesse contexto, a escola pode desempenhar um papel importante na construção e colocação de limites para seus alunos, mas ela não pode arcar com isso sozinha, afinal, o limite, como já foi dito aqui, começa a ser construído antes da criança entrar na escola.
É na escola onde a criança vivencia sua primeira experiência social fora dos moldes familiares, onde experimenta regras e valores diferentes do seu convívio no lar. Nesse novo ambiente, ela conhece outras formas de se relacionar, atende a comandos de adultos diferentes e segue uma rotina distinta da rotina de sua casa.
Nessa nova dinâmica, a criança aprende não só a se relacionar com os novos ganhos cognitivos, mas também com vivências emocionais e sociais.
A escola pode ser um lugar especialmente favorável para que a criança aprenda a construir novos limites, a lidar com conflitos sem usar a agressividade como recurso único e, também, a encarar melhor as frustrações.
Embora a teoria de Henri Wallon, psicólogo e pedagogo francês, não aborde especificamente o tema dos limites, sua abordagem do desenvolvimento infantil pode ser relacionada à compreensão da importância dos limites na educação escolar.
Justamente escolhemos Wallon para falar sobre limites pelo seu enfoque afetivo com a aprendizagem. O teórico explica que a escola contribui significativamente para a compreensão do desenvolvimento infantil e para a importância da afetividade no contexto escolar.
Wallon enfatiza a interação entre os aspectos emocionais, cognitivos e motores no desenvolvimento da criança. Ele destaca a importância do ambiente e da qualidade das interações sociais para o processo de aprendizagem e formação da personalidade.
Portanto, segundo Wallon, no contexto escolar, a colocação de limites é uma prática fundamental para criar um ambiente estruturado e seguro. Os limites estabelecidos pelos professores e outros adultos presentes na escola ajudam a orientar o comportamento dos alunos, promovendo o respeito mútuo, a disciplina e a convivência saudável.
Para que isso aconteça, a escola pode estabelecer algumas diretrizes:
- Criar um ambiente saudável, seguro e afetuoso;
- Mediar conflitos de forma pacífica e amorosa, validando os sentimentos das crianças;
- Promover um olhar individualizado para as necessidades de cada criança;
- Proporcionar um ambiente de diálogo, onde as crianças se sintam ouvidas;
Sobre o tema “A importância da escuta ativa: como ouvir as crianças”, você pode saber mais entrando no blog da Casa Escola.
Nessa direção, a Casa Escola tem procurado desenvolver vários trabalhos de rotina que podem ajudar na colocação do limite, construindo com as crianças regras básicas de convivência, como não bater no colega, ajudar na sala, guardar seus pertences, ser gentil, não humilhar o colega etc, e discutindo outras normas já estabelecidas pela esfera escolar, como usar a farda da escola, chegar no horário da aula, devolver o livro emprestado da biblioteca.
Outros recursos, como criar situações de diálogo, são muito importantes para o avanço na socialização. Parte desses recursos são:
- Roda de Conversa diária na Educação Infantil, em que as crianças trazem assuntos diversos para o grupo e lá se aprende, desde pequenos, que a fala, quando respeitada, é um recurso importante para um compreender o outro,
- Conselho de Classe no Ensino Fundamental, o que é demandado pelos alunos quando eles percebem que há conflitos a serem resolvidos na turma,
- Assembleia, um encontro que ocorre a cada duas semanas com os alunos do Fundamental II, em que se discute sobre problemas da escola, e os alunos podem sugerir soluções.
- Reuniões trimestrais com as famílias em que se discute o trabalho pedagógico e se abre espaço para falar sobre questões comportamentais que afligem o grupo de pais.
- Reuniões individuais com as famílias, que visam a troca de informações que irão auxiliar, no final das contas, a criança.
- Encontros com as famílias para debater assuntos pertinentes à convivência e outros assuntos de interesse dos pais.
Fora isso, qualquer aluno pode conversar e trazer suas dificuldades para qualquer adulto da escola quando a hierarquia se rompe em nome do acolhimento. Ele pode buscar a direção assim como um professor, com o qual ele tem mais identificação. Isto funciona bem quando o trabalho do corpo docente e técnico acontece em equipe.
Assim, a escola oferece um ambiente de apoio e intervenção, onde os alunos podem buscar orientação e suporte quando enfrentam dificuldades. Isso pode ser realizado por meio da equipe multidisciplinar e estratégias de mediação de conflitos. Essas abordagens, que fortalecem a confiança, auxiliam os alunos na compreensão dos limites, no amadurecimento emocional e no desenvolvimento de habilidades para resolução de problemas.
Não entenda mal, acolher e escutar o aluno não significa abrir mão do limite. Entendemos que a escola é um ambiente de socialização e aprendizagem, onde existe a oportunidade de estabelecer normas e regras claras, proporcionando aos alunos um ambiente estruturado e previsível.
As coisas por aqui são pensadas e discutidas, portanto, a equipe também evolui nas concepções de colocação de limite, observando e atuando caso a caso. E para que isso aconteça, a escola proporciona uma comunicação aberta e regular com as famílias, compartilhando informações sobre o desenvolvimento acadêmico e socioemocional do estudante.
Ao envolver os pais no processo educacional, a escola fortalece a consistência das mensagens transmitidas sobre os limites e fortalece a rede de apoio.
Conclusão
Então, diante do que estamos discutindo, vimos que a colocação de limites na escola não ocorre apenas por meio do “não”, mas sim através de um conjunto de práticas e estratégias que visam auxiliar os estudantes na compreensão e na internalização dos limites.
Portanto, o mesmo princípio deve ocorrer em casa na relação entre filhos e adultos, a colocação do limite não deve vir apenas por meio do “não”. Colocar o limite não pode ser algo automático, precisa ser pensado antes e depois de acontecer e pode até vir dissociado da palavra “não”, mas precisa estar na área do respeito e da confiança.
Assim como qualquer habilidade humana, ouvir “não” é para a criança algo a ser aprendido no dia a dia e com a ajuda do adulto. Não se sinta desestimulado quando a criança resistir, converse com os outros adultos de casa, peça ajuda da escola, procure um profissional, se reposicione, o que não deve acontecer é que a criança desconheça o que é limite.